Guerreiro, T.; Rodrigues, R.; Martins, R.
Diante de nós, um olhar preocupado, uma fala corrida e dispersa, uma atitude inquieta, um silêncio de receios. O discurso vagueia até o momento em que não existe mais jeito e, como num grande desabafo, consegue verbalizar essa onda de desconforto dizendo: “estou sem memória”. Um apelo por ajuda, muita expectativa em cena e o desejo de encontrar ali o “remédio” para sua cura.
Do lado de cá, perguntas surgem e crescem dentro de nós: “Quem é você ?” “Qual é a sua história ?” “Como foi chegar a ficar “sem memória?”.
Como se estivéssemos juntos a contemplar as peças soltas de um quebra-cabeças na mesa, ao convite para falar de sua história, segue-se um momento de introspecção e, como se percebesse uma chave para a organização das peças, discorre cuidadosamente sobre fatos de sua vida, do seu jeito de ser, que vão entrando em cena como uma seqüência de notas, de ritmo, intensidade e tons muito próprios, formando uma melodia, uma melodia que faz sentido e que abre as portas para o início do trabalho…
Às vezes, não conseguimos lembrar de coisas simples, rotineiras, ou não conseguimos reter informações importantes e pensamos que deveríamos absorvê-las “a todo custo”. Sinais de fracasso mental?
Em geral, associamos este mau desempenho ao envelhecimento, ou a um desfavorecimento pessoal — menor capacidade, menor inteligência — gerando, assim, um estado de menos valia e conseqüentes atitudes ineficientes que confirmam esta percepção distorcida de nós mesmos. Deixamos de avaliar mais claramente o que se passa, de buscar entendimento e consciência de nossos processos internos, e, portanto, deixamos ao acaso o desenrolar de eventos que podem ou não estar expressando um estado patológico, passível de tratamento e, muitas vezes, reversível. Desse modo, nós nos distanciamos de nosso potencial e de sua expressão mais plena, aspectos relevantes na conquista de qualidade de vida.
A memória é uma complexa função mental. Sua atividade se estende além dos limites da cognição, interagindo na intimidade com outras funções superiores — afeto, motivação, criatividade — e básicas — ligadas à manutenção do equilíbrio orgânico. (SANVITO, 1991; ECCLES,1992; ROSENFIELD, 1994). Dentro dessa perspectiva, a memória compõe a inteligência, a personalidade, a integridade de nossas células, a nossa evolução. Nela residem os elos de nossa construção pessoal, impregnados de afeto, dando sentido às nossas vidas.
Desse modo, a ineficácia das funções mnésicas pode representar para o indivíduo a possibilidade de quebra da sua identidade pessoal, da capacidade de interagir com eficácia no mundo, de gerir sua própria vida, e ser a expressão de um adoecimento no plano físico e/ou mental e/ou emocional.
Ao levarmos em consideração as mudanças biológicas decorrentes do envelhecimento — processo singular que, num mesmo organismo, apresenta expressões diversas, resultado da ação de fatores genéticos e epigenéticos —MORIGUCHI, Y. e MORIGUCHI, E.,1988; VARGAS, 1994), observamos um contexto de maior fragilidade física e emocional do indivíduo, predispondo-o mais facilmente a situações de mau desempenho mnésico que poderão ser reforçadas, cristalizadas, caso o ambiente seja hostil.
É importante ressaltar que, nos últimos anos, o estudo acerca do desempenho mnésico vem conquistando uma posição de destaque nas pesquisas que tratam do envelhecimento cognitivo. Isso decorre da contribuição da memória, em seus diferentes aspectos processuais nas inúmeras atividades cognitivas complexas de raciocínio e compreensão (VAN der LINDEN, 1994), e, também pela decorrência da observação de funções declinantes associadas ao envelhecimento, sendo a memória um modelo prototípico da mecânica cognitiva, dentro do conceito de dupla categorização da inteligência sugerido por Baltes.
Outro aspecto relevante a ser lembrado ao tratarmos desse tema, é que as demências “afetam primariamente os idosos. Estima-se que sua prevalência varie largamente em função da população estudada, dos testes utilizados e dos critérios de diagnósticos. Contudo, acredita-se que aproximadamente 15% da população com idade acima de 65 anos sofre de algum tipo de demência, sendo essas cifras ampliadas dramaticamente com o aumento da idade, alcançando em diferentes estudos, cifras que variam de 25% a 47% na faixa etária acima de 85 anos” (BRANDT e RICH, 1995). A constatação desses dados, aliada ao fato de que são imprecisos os limites entre os distúrbios benignos de memória e os sinais precoces de doenças degenerativas do SNC, fundamenta o temor de uma decadência mental próxima, que costuma estar presente atuando como pano de fundo no cenário de ineficácia mnésica, construído a partir do somatório de diversos fatores.
No tocante às funções mnésicas propriamente ditas, é importante ressaltar certas modificações que ocorrem no sistema nervoso que, ao nosso ver, são aspectos-chave para a compreensão de insucessos mnésicos em adultos idosos. “Sabemos que, com o envelhecimento, existe uma redução de células nervosas — alguns pesquisadores referem a perda de 100 mil neurônios por dia, a partir dos 30 anos —, diminuição da velocidade da condução do estímulo nos neurônios, diminuição da agilidade de criação de novas conexões sinápticas e diminuição da sensibilidade dos órgãos sensoriais. Essas mudanças se traduzem em: lentidão no processamento das informações, interferindo na retenção e prontidão de resgate; cansaço precoce em tarefas que exijam a manutenção da concentração por longo período; maior sensibilidade às interferências, facilitando a ocorrência de distração; menor rendimento na execução de tarefas simultâneas; menor eficácia no estabelecimento de novas estratégias de pensamento.” (GUERREIRO e colabs. ,1996)
Por outro lado, essas mudanças decorrentes do envelhecimento fisiológico, não são comprometedoras, apenas modulam a expressão do indivíduo e, associadas a outros fatores — perfil psicológico, condições de saúde física, ambiente, estilo de vida, escolaridade etc. — deflagram um desempenho mnésico e global, que pode ou não ser satisfatório. Segundo Hayflick, “A descoberta mais profunda dessa década no que se refere à compreensão do envelhecimento do cérebro humano não veio dos laboratórios de pesquisa, mas sim de nossas próprias atitudes. Percebemos que a perda da capacidade mental decorrente do envelhecimento não é inevitável. A antiga idéia de que a senilidade é um componente normal do envelhecimento está simplesmente errada” (HAYFLICK, 1996).
Apesar da aparente concordância com as afirmações de Hayflick, reforçadas com inúmeros resultados de pesquisa que vêm confirmando essa proposição (VAN der LINDEN, 1994), ainda persiste uma visão bastante negativa, muitas vezes camuflada, sobre a capacidade intelectual do idoso. Esta questão pode ser melhor analisada, a partir de estudos sobre atitudes em relação à velhice (NERI, 1991). Nesses trabalhos evidencia-se um grande número de esteriótipos negativos, compartilhados, inclusive, pelos próprios idosos, resultando numa expectativa que se impõe como relevante fator interferente na expressão de suas potencialidades.
Sobre este tema, um importante estudo foi desenvolvido por Becca Levy e Ellen Langer, do Departamento de Psicologia da Universidade de Harvard, procurando explorar o quanto os esteriótipos negativos acerca da velhice contribuem para os déficits de memória em adultos idosos. Os participantes eram jovens e idosos de três distintos grupos: chineses — que possuíam boa audição —, americanos portadores de déficit auditivo e americanos que possuíam boa audição. Chineses e americanos surdos foram escolhidos a partir do pressuposto de que teriam sido menos expostos a esteriótipos negativos sobre envelhecimento e, em consequência, incorporado menos do que americanos que possuíam boa audição. Eram os seguintes resultados esperados: (a) uma interação na qual os três grupos de jovens poderiam ter uma “performance” semelhante nas questões de memória, ao passo que os idosos surdos e os idosos chineses poderiam superar o grupo de americanos idosos que possuíam boa audição; (b) uma correlação positiva entre a expectativa acerca do envelhecimento e a “performance” de memória entre os idosos. Os dados confirmaram ambas as hipóteses: “Os resultados sugerem que as crenças culturais acerca do envelhecimento participam amplamente na determinação do desempenho mnésico em adultos idosos” (LEVY e LANGER, 1994).
Outro aspecto marcante a ser considerado nessa discussão é a influência de fatores sociais e psicoafetivos na expressão da intelectualidade. “Um contato social suficiente, uma ocupação carregada de significação, segurança socioeconômica e um estado de saúde satisfatório são, por certo, fatores que retardam os quadros de deterioração mental ” (VARGAS, 1981). Segundo este mesmo autor, “indubitavelmente, todos esses processos sociológicos têm grande importância na estabilidade do idoso, porém sentir-se útil socialmente se me afigura como de maior importância para reduzir o processo de deterioração mental”. Indo ao encontro desta visão, basta lembrarmos dos já conhecidos efeitos da aposentadoria, quando mal encaminhada, na saúde dos indivíduos (ABREU e colabs., 1994) e o impacto na vida das mulheres que se dedicaram quase exclusivamente aos cuidados dos filhos e da casa, ao se depararem com o “Ninho Vazio”.
Baltes e colabs. estudaram a resposta de adultos idosos a técnicas de intervenção para melhoria de funções classicamente conhecidas como declinantes no envelhecimento — memorização de lista de palavras como modelo prototípico de inteligência fluida — e, após inúmeros trabalhos que comprovaram a plasticidade cognitiva de idosos, direcionaram-se ao estudo dos limites dessa plasticidade e proporcionaram um salto nesta área de conhecimento, ao definirem alguns conceitos (BALTES e colabs.,1992):
Desempenho basal: desempenho observado quando um indivíduo realiza uma tarefa sob condições “standard” de avaliação;
Capacidade de reserva basal: expressa através do desempenho que o indivíduo pode alcançar quando realiza uma tarefa sob condições “ótimas” de avaliação;
Capacidade de reserva potencial: expressa através do desempenho alcançado na realização de tarefa, após o indivíduo ter-se submetido à intervenção para otimização de funções cognitivas.
A constatação de níveis diferentes de desempenho cognitivo, dependentes das condições de avaliação — ótimas ou não —, em parte, pode explicar as diferenças encontradas nos resultados de pesquisas que se propunham a estudar essas funções em adultos idosos. Outro aspecto a ser considerado, é a comprovação da existência de capacidades potenciais, que se mantém à espera de adequados estímulos para sua expressão, ao longo da vida. Nesses estudos, Baltes e seus colaboradores, vêm observando que as maiores diferenças entre adultos jovens e idosos saudáveis encontram-se nos limites das capacidades de reserva, isto é, na magnitude da melhoria após a realização de intervenções de otimização cognitiva. Cabe-nos ressaltar que esses estudos apontam para a possibilidade de idosos saudáveis, após treinamentos, poderem alcançar os níveis de desempenho de adultos jovens — que não tenham sido submetidos aos treinamentos —, favorecendo, portanto, a manutenção e o aprimoramento de habilidades próprias, tão importantes na manutenção da autonomia no curso da vida.
Martial Van der Linden, ao fazer uma revisão bibliográfica sobre o assunto, afirma que as diferenças no funcionamento cognitivo ligadas à idade podem variar em função de vários fatores, entre os quais (VAN der LINDEN, 1994):
os fatores próprios ao sujeito — seu nível escolar e intelectual, sua motivação, seu grau de atividade, seus conhecimentos prévios concernentes à tarefa a ser empreendida ou ao material a ser tratado, sua saúde, sua personalidade, etc. —;
os fatores ligados ao material a ser tratado — sua riqueza, sua dificuldade, sua estrutura, sua organização, etc. —;
os fatores ligados à tarefa a ser empreendida e, de modo mais geral, às condições em que o sujeito é levado a cumprir essa tarefa — as exigências de tratamento dessa tarefa, a velocidade e o modo de apresentação, as condições de recuperação, etc. —.
A nosso ver, torna-se prioritário aprofundar os estudos que analisem a ação dessas diversas influências no desempenho mnésico e global dos idosos, assim como o estudo de suas potencialidades e limites. Se por um lado, sabemos que os idosos como grupo etário apresentam declínios cognitivos — em cortes transversais e longitudinais —, por outro, não se trata de um declínio generalizado, havendo um importante percentual de sujeitos que não sofrem declinio intelectual significativo (BALLESTEROS, 1991; HAYFLICK, 1996).
Acreditamos ser indispensável àqueles profissionais, que se propõem a trabalhar com esse grupo, o desenvolvimento de uma visão crítica acerca dos esteriótipos negativos sobre o envelhecimento e o aprimoramento da percepção, para que tenham “olhos para ver” as potencialidades que, nem sempre, encontram espaço social e afetivo para sua expressão. “Em poucos anos , atender socialmente às pessoas [idosas] exigirá necessariamente um componente de formação integral, em que o cognitivo terá um posição prioritária” (BALLESTEROS, 1991).
Finalmente, esperamos que, em breve, uma visão mais humana, enriquecida desses conhecimentos sobre as potencialidades e necessidades de adultos idosos, esteja marcadamente presente em nossa sociedade, permitindo ao idoso e ao jovem, que irá envelhecer, condições necessárias para uma vida com qualidade ao longo de sua existência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- ABREU, A. L. e outros. (1994). Relatório do XV Congresso Brasileiro dos Fundos de Pensão, Porto Alegre, ABRAPP e CEFTI.
- BALTES, P. B. (1992). Envelhecimento Cognitivo: Potencialidades e Limites Revista Gerontologia Vol. II, N°1: 23-44, 1994. São Paulo. Orgão oficial da SBGG
- BRANDT, J. & RICH, J. B. (1995). Memory Disorders, Baddeley, A. D. (chapter 10). John Wiley & Sons Ltd, England.
- ECCLES, J. C., & POPPER, K. R. (1992). O Cérebro e o Pensamento. Ed. Universidade de Brasília.
- FERNÁNDEZ-BALLESTEROS, R (1991). Evaluación e intervención psicológica en la vejez. Barcelona: Martínez-Roca.
- GUERREIRO, T. e colabs. (1996). Investindo no Potencial do Ser/Preparação para a Aposentadoria.Anais do I Seminário de Preparação para a Aposentadoria da UERJ. Rio de Janeiro.
- HAYFLICK, L. (1996). Como e Por Que Envelhecemos. Ed. Campus. Rio de Janeiro.
- LEVY, B. & LANGER, E. (1994). Aging Free From Negative Stereotypes: Successful Memory in China and Among the American the American Deaf. Journal of Personality and Social Psychology Vol .66
- N° 6, 989-997. American Psychological Association. USA.
- MORIGUCHI, Y. & MORIGUCHI, E. (1988). Biologia Geriátrica Ilustrada. Fundo Editorial BYK. São Paulo.
- NERI, A. L. (1991). Envelhecer num País de Jovens. Ed. da UNICAMP. Campinas, São Paulo.
- ROSENFIELD, I. (1994). A Invenção da Memória. Ed. Nova Fronteira. Rio de Janeiro.
- SANVITO, W. L. (1991). O Cérebro e suas Vertentes. Livraria Roca Ltda. São Paulo.
- VAN der LINDEN, M. & HUPET, M. (1994). Le Vieeillissement Cognitif, Unité de Neuropsychologie Cognitif et Unité de Psychologie Cognitif. Presses Universitaires de France.5.
- VARGAS, H. S. (1981). Estudo do Coeficiente de Deteriorização Mental de Velhos. V Congresso Brasileiro da SBGG, Salvador – Bahia. Revista Senecta – 4 (2): 9-18
- VARGAS, H. S. (1994). Psicogeriatria Geral. Ed. Guanabara Koogan. Rio de Janeiro.
Este artigo foi publicado no Cadernos do IPUB – Envelhecimento e Saúde Mental: Uma Aproximação Multidisciplinar, nº 10 , p.223-228, Instituto de Psiquiatria da UFRJ, 1997.