Produções

Memória e otimização cognitiva

Tania Guerreiro

A manutenção da eficácia cognitiva no envelhecer constitui-se em uma condição diferencial de qualidade de vida e de preservação da autonomia. Embora possa ser freqüente a observação de declínio cognitivo entre idosos, não podemos concluir que isso seja inevitável ou inerente ao processo de envelhecimento. É necessário abordar esta questão sob uma perspectiva dinâmica em que se considere a ação de intrincados e numerosos fatores que atuam na vida do homem.

O desenvolvimento da inteligência humana ocorre ao longo de todo o curso de vida sob a ação de fatores genéticos e epigenéticos. Implica em ganhos e perdas, preponderando os ganhos na infância e as perdas na velhice. O processo é multifuncional e multidirecional, de tal forma que as diferentes funções/ capacidades evoluem em ritmos e direções muito próprios, fazendo com que as diferenças individuais tendam a se ampliar com o avançar da idade.

No envelhecimento saudável, apesar de existirem mudanças tais como a diminuição na velocidade de processamento das informações, o esperado é que a mente permaneça apta à aprendizagem, mantendo-se capaz de se adaptar aos estímulos. Contudo, ainda não temos sido capazes de proporcionar um envelhecimento saudável à maior parte da população. As mudanças biológicas associadas ao envelhecimento tornam o indivíduo mais frágil e, assim, propenso a doenças que podem atuar direta ou indiretamente, comprometendo suas capacidades cognitivas.

Por outro lado, um número cada vez maior de idosos no mundo expressa vitalidade cognitiva, dentre estes alguns centenários que se tornam exemplos de que é possível manter um alto padrão de desempenho (Fillit, 2002). Essas observações propiciam uma perspectiva de prevenção, ao sugerir que o declínio cognitivo possa ser evitado mesmo em idade avançada. Um grande número de pesquisas na década de 1990 analisou a influência de variáveis relacionadas ao estilo de vida e condições de saúde sobre o desempenho cognitivo. Nos últimos anos, têm sido identificados fatores de risco para declínio cognitivo potencialmente reversíveis (Fillit, 2002; Anstey, 2004). Estes achados se somam às produções no campo da Psicologia do Envelhecimento e às descobertas em Neurociência e fornecem uma sólida base conceitual para o desenvolvimento de intervenções de otimização cognitiva para idosos.

A Memória no envelhecimento

A memória é uma complexa função mental que proporciona ao ser humano uma capacidade extraordinária de adaptação ao meio ambiente. Somos o que somos, em grande parte, em razão da expressão de nossa memória celular − genética −, aliada às aprendizagens advindas dos diferentes momentos de nossas vidas, conscientes e não conscientes, que se encontram arquivadas em nossos sistemas de memória. A perspectiva de perda de memória é, portanto, algo assustador, já que traz em si o temor à perda da própria identidade. Quando associada ao processo de envelhecimento, período em que se espera maior vulnerabilidade física e maior risco de comprometimento da autonomia, essa perspectiva pode ser devastadora.

São esperadas mudanças sutis na cognição no envelhecimento saudável. Porém, a memória apresenta peculiaridades que a torna mais suscetível à ação de fatores que promovem sua ineficácia. A partir dos 40 anos podem ser observadas pequenas mudanças na memória que tendem a se ampliar com o tempo. O modo com que o indivíduo lida com essa questão − interpretações, encaminhamentos −, suas condições de saúde e seu estilo de vida interferem sobremaneira na evolução de seu desempenho. Por outro lado, existe uma capacidade cognitiva de reserva que pode ser mobilizada para a manutenção ou aprimoramento do desempenho mnêmico e global em qualquer etapa do curso de vida. Contudo, essa capacidade de reserva ou plasticidade cognitiva é menor quanto maior a idade e encontra-se marcadamente comprometida nos processos neurodegenerativos (Calero, 2004). Esta observação tem sido utilizada como um parâmetro de avaliação, diagnóstico e prognóstico de transtornos cognitivos. O trabalho de otimização cognitiva ao mobilizar as capacidades de reserva oferece condições especiais para se inferir a plasticidade cognitiva, por exemplo, ao observar a aprendizagem de uma lista de palavras a partir do uso de mnemotécnicas.

Normalidade e transtornos cognitivos

O conceito de cognição normal é pouco preciso, havendo várias possíveis definições. Destacam-se, no entanto, dois grupos de idosos que são classificados como normais. O primeiro é formado por indivíduos hígidos que vivenciam o que denominamos envelhecimento bem-sucedido. Um número ainda pequeno de idosos compõe este grupo e apresenta resultados semelhantes aos adultos jovens nos testes neuropsicológicos. O segundo é o grupo do típico idoso, constituído por indivíduos que apresentam co-morbidades, e obtêm nos testes um desempenho de até 1dp inferior à média do adulto jovem. O termo AAMI (Crook,1986) – age-associated memory impairment (prejuízo cognitivo associado ao envelhecimento) é utilizado para denominar as mudanças ocorridas na cognição no envelhecimento normal ( segundo grupo).

A compreensão dos transtornos cognitivos que afetam os idosos é considerada hoje uma prioridade nas pesquisas nesse campo. Estudos têm demonstrado que indivíduos portadores de prejuízo cognitivo leve – MCI – mild cognitive impairment – (Petersen, 2001) apresentam maior risco de evoluir para demência. Desse modo, há grande interesse no desenvolvimento de intervenções de caráter preventivo para esse grupo.

Otimização Cognitiva – A experiência da Oficina da Memória®

A otimização cognitiva (Guerreiro, 2001) se baseia na concepção da teoria de curso de vida da psicologia do envelhecimento e comporta a noção de potencialidades e limites. Visa à conquista de uma renovada condição de equilíbrio entre perdas e ganhos para a manutenção da eficácia cognitiva. O trabalho desenvolvido na Oficina da Memória® possui uma abordagem teórico-vivencial que prioriza a assimilação de conhecimentos metacognitivos e relativos a cuidados de saúde, além da estimulação de funções mentais, tais como a cognição, o afeto, a criatividade e a motivação. A otimização cognitiva se dá a partir dos mecanismos de Seleção, Otimização, Compensação e Automatização; da aquisição de conhecimentos metacognitivos; da construção de novas estratégias cognitivas e da melhoria das condições de saúde. Existem cursos e eventos com formatações distintas, definidas a partir do perfil dos participantes (nível de escolaridade; condições de saúde; status cognitivo; interesses, etc.)

A Otimização Cognitiva, ao intervir a partir de uma abordagem multifatorial, vem se revelando como um caminho de prevenção e adiamento do declínio em atividades críticas do cotidiano, favorecendo a manutenção da autonomia e conquista de melhor qualidade de vida no envelhecimento.

Referências bibliográficas

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Este artigo foi publicado no livro Formação humana em Geriatria e Gerontologia./ Editores Renato Veras, Roberto Lourenço. – Rio de Janeiro: UnATI/UERJ, 2006. ISBN 85-87897-13-6

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